Ubiratan convidava à paz

 

Escrevo hoje num dia triste.

Chegou-me há pouco subitamente, a notícia da morte de Ubiratan D’Ambrósio, a atravessar com letras negras o brilho branco do ecrã do meu computador, em que escrevia já não sei o quê, cortado pela triste notícia.

Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas, universidade pública do estado de São Paulo no Brasil, Ubiratan D’Ambrósio é, desde há muito, figura de renome internacional, de grande notoriedade na comunidade da Educação Matemática. Para lá das muitas realizações que promoveu e em que se envolveu, Ubiratan é internacionalmente reconhecido como ‘pai’ e mentor da Etnomatemática, ‘movimento’ de perspectiva sócio-cultural sobre a Matemática que surgiu no Brasil a partir dos seus trabalhos de cariz antropológica, espalhando-se depois por muitos países.

Ubiratan D’Ambrósio recebeu, em 2001, a medalha Kenneth O. May da International Commission on the History of Mathematics, concedida por contribuições notáveis na História da Matemática. Em 2005, pelo seu contributo no domínio da Educação Matemática, Ubiratan recebe da International Commission on Mathematical Instruction, a medalha Felix Klein, o mais alto louvor atribuído por esta comissão.

Ubiratan, vale a pena apontar aqui, pertencia ao Conselho da Pugwash Conferences on Science and World Affairs (1987-1997), organização não governamental que em 1995 recebeu o Prémio Nobel da Paz. E, quero também salientar, Ubiratan foi o Presidente-Fundador do Instituto de Estudos do Futuro de São Paulo em1993*. "Educar é preparar gerações com algo mais do que especialidades”, afirmou Ubiratan num seminário sobre educação do futuro para comemorar os 10 anos da criação desse Instituto, onde também se debateu o apoio a uma “rede global de educação para a paz”**. “Estudos do Futuro”, “Educação para a Paz”, ‘palavras de ordem’ que, podemos dizer, englobam os interesses e preocupações maiores de Ubiratan no trabalho que desenvolveu, e que norteavam esse trabalho.

Ubiratan partiu agora, longa que foi a sua vida, o seu tempo por aqui. Mas não será, porventura, sempre curto o tempo, sempre curta a vida que, em cada dia, nos é dada a viajar no tempo que temos? Ubiratan partiu, e muitas foram as suas viagens, grande viajante que também era, visitando terras e gentes por todo o mundo, conferenciando, falando e escutando, conversando.

Se me lembro bem, conheci Ubiratan D’Ambrósio em finais dos anos 80, princípios dos anos 90, ou perto. Estava eu já no Departamento de Educação da Faculdade de Ciências, e tinha a APM acabado de ‘nascer’. Foi certamente por aí, num lado ou no outro, que pela primeira vez nos encontrámos.

Desde então, e por diversas ocasiões, nos cruzámos em congressos e outros encontros, frequentemente com a oportunidade de conversarmos. Conversas às vezes curtas e ligeiras, a caminhar em corredores ou parados em pé, nos pátios ou em algum jardim dos edifícios que albergavam os encontros em que participávamos, ou ainda, mais confortavelmente como Ubiratan gostava, sentados em sofás de alguma sala, durante intervalos desses encontros.

Independentemente da maior ou menor convergência ou concordância sobre o que falávamos, gostei sempre desse conversar, dessas conversas. Eram em geral, naturalmente, conversas sobre o ensino e aprendizagem da Matemática, mas também sobre temas mais abrangentes como a Escola e a Educação, indo buscar problemas ou acontecimentos que o preocupavam. Foram sempre conversas tranquilas, afáveis, aqui e ali, trazendo sorrisos. Ubiratan gostava de rir.

A paz, a paz no mundo e entre os povos do mundo, era um dos temas que mais o preocupava, e várias vezes o ouvi falar sobre isso. E, sobre este assunto, mais do que falar, eu escutava. Ubiratan era grande, e o seu corpo grande, apetece dizer, respirava calma, inspirava confiança e humanidade. Convidava à paz.

Ubiratan gostava de Portugal que por muitas vezes visitou, participando e intervindo em diversas realizações educativas, em fóruns universitários e outros. E gostava da APM, facilmente disso nos apercebíamos quando o ouvíamos falar, por vezes mesmo entusiasmado, sobre a Associação, sobre o trabalho que ia desenvolvendo, as suas iniciativas, as suas posições.

Vale a pena recordar hoje que o nome da revista da Associação foi escolhido pouco depois da sua criação em fins de 1986, a partir do título do livro de Ubiratan:

Da Realidade à Ação

Reflexões sobre Educação e√ Matemática


Lembro-me bem que a redacção da revista — a que então eu pertencia e era directora a Leonor Moreira — preparava na altura o seu primeiro número, para sair no princípio de 1987. Quando nos trabalhos dessa preparação se discutiu o nome da revista, a redacção acolheu entusiasmada a proposta de Paulo Abrantes, também membro da redacção, para que o nome fosse Educação e√ Matemática.

Desse modo, como pretendíamos, se enunciavam e realçavam as principais áreas de intervenção da revista — a Educação, a Matemática e, como o e sobrescrito bem salienta, a Educação Matemática. E assim, em Janeiro de 1987, se publica o N.º 1 da revista com o nome colhido do (sub)título do livro de Ubiratan. Hoje, 35 anos passados, ainda assim se mantém como uma espécie de herança de Ubiratan, e como lembrança.

Não me alonguei muito, mas quis deixar hoje, por Ubiratan, para Ubiratan, algumas palavras, poucas que fossem, e são.
 

Henrique Manuel Guimarães
Lisboa, 13.05.2021

 

*CVitae. http://www.fernandosantiago.com.br/cv_ubi.htm [13.05.2021]
**Revista Lusófona de Educação, pp. 163-168, 11, 2008

 

Veja mais, sobre Ubiratan D'Ambrosio, aqui